#38 | Direito de ficar em silêncio
- André Lobato
- 18 de ago. de 2020
- 4 min de leitura
Todos vocês já devem ter ouvido a frase: “Você tem o direito de ficar calado, tudo o que disser poderá e deverá ser usado contra você dentro do tribunal”.
Essa é a primeira parte do aviso de Miranda, bastante conhecida pelos roteiros de filmes e seriados policiais norte-americanos. Poucos sabem, mas os mesmos preceitos são válidos aqui no Brasil, o que gerou certos princípios constitucionais como o direito dos acusados por crime ao silêncio. Segundo o Art. 5º, “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada à assistência da família e de advogado”.
A convenção americana de direitos humanos e pacto internacional sobre os direitos civis e políticos da ONU seguem essa mesma linha de pensamento. Na doutrina, esse preceito é chamado de princípio da não auto-incriminação. Além disso, esse direito fundamental é tão importante que há diversos casos no STJ que definem os limites para o seu exercício, revelando a sua essência e consequências efetivas.
É um princípio que abarca garantias, visando o fato que o sujeito passivo, ou seja, aquele que comete o crime, não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por se recusar a colaborar com a acusação. Visto que, o investigado tem nenhum compromisso com a função jurisdicional acusatória, ficando resguardado de exercer diversas vertentes do direito à não-incriminação.
Desta forma, não pode surgir de nenhuma forma a presunção de culpabilidade e qualquer tipo de dano imputado quando o acusado ficar em silêncio. Além disso, esse princípio também abrange exceções, como a de se auto-incriminar, não confessar o culpado, permanecer calado, mentir e outras diversas modalidades que pode ser usada na defesa do réu.
Um exemplo recente, é a lei que alterou o código de trânsito brasileiro: a Lei Seca. Nela, o cidadão não é obrigado a fazer o teste de bafômetro e também não se admite a produção deliberada de provas falsas para a defesa de terceiros. Nesse caso, a pessoa pode incorrer ao crime de falso testemunho, já pacífico no STJ. No entanto, não é a mesma coisa quando a testemunha mente de forma legítima para não se auto-incriminar, pois há uma diferença entre auto-incriminação e tentar salvar outro de um crime.
Nesse sentido, o ministro Carvalhinho retrata um caso seu em que o advogado e o réu mentiram a respeito da aquisição do entorpecente em processo envolvendo um traficante. Nele, o pedido do advogado foi atendido, resultando em um habeas corpus que beneficiava o usuário. Para os ministros, a conduta da testemunha que mente em juízo para não se incriminar, sem a finalidade especial de causar prejuízo a alguém ou a administração da justiça, é atípica. Por isso, não pode ser crime o advogado que participa do suposto ato ilícito.
Outro caso famoso em que os acusados também recorreram a esse princípio foi o do casal Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá. Na época, eles tentaram afastar a acusação de fraude processual. O pedido da defesa sustentava não poder ser ator de crime de fraude processual àquele que é imputado o crime, ou seja, eles. Afinal, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.
O Ministério Público Federal se manifestou favorável à esse pedido. Porém, a corte entendeu de forma diversa. Segundo o voto do ministro Napoleão Nunes Maia, esse princípio não abrange a possibilidade de os acusados alterarem a cena do crime. Visto que, como argumentou o relator:
“Uma coisa é o direito à não incriminação. O agente de um crime, não é obrigado a permanecer no local do delito, a dizer que está com a arma utilizada ou até mesmo confessar. Outra bem diferente, todavia, é alterar a cena do crime, inovando o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, para, criando artificiosamente outra realidade ocular, induzir peritos ou o juiz a erro”.
No âmbito administrativo, quando se apura responsabilidade para a aplicação de sanções, o servidor também é protegido pelo direito à não-incriminação. É o que decidiu o STJ em vários RMFs, determinando a anulação de demissão de servidores. Além disso, a comissão disciplinar constrangeu o servidor a prestar o compromisso de apenas dizer a verdade nos interrogatórios.
De uma forma ou de outra, acredito que isso deveria ser um crime de perjúrio, o que não existe no Brasil, pois não se pode obrigar alguém a falar a verdade, fato que também vemos em filmes americanos. Além disso, no Brasil, segundo o dicionário Aurélio, o perjúrio é o ato de perjurar, ou seja, é o crime do juramento falso. Sobre essa ótica, é sabido que no ordenamento político brasileiro que o falso julgamento, especificado no art. 442, só é punido quando cometido por testemunha e não pelo o próprio réu. Caso cometido pelo réu, não é crime no Brasil, uma vez que é tido como vertente do direito a defender-se de auto-incriminar.
Desta forma, não se trata do direito de mentir, mas simplesmente do direito de não punir essa mentira. Sendo que a liberdade de manifestação do réu se entende ao ato de falar a verdade. Além disso, conforme o princípio da legalidade, subentende-se que a mentira não pode ser proibida, pressupondo-se que seja permitida. Precisamos falar sobre o direito à mentira para colocar o perjúrio como um não-crime no Brasil. Visto que esse desdobramento do direito ao silêncio pode ser inserido na obrigatoriedade e no princípio da não-incriminação.
Nesse contexto, há diversos posicionamentos. Entre eles podemos destacar o do Nucci, que afirma que:
“Sustentamos ter o réu o direito de mentir em seus interrogatórios de individualização e de mérito. Em primeiro lugar, porque ninguém é obrigado a se auto acusar. Se assim é, para evitar a admissão de culpa, há de afirmar o réu algo que sabe ser contrário à verdade. Em segundo lugar, o direito constitucional à ampla defesa não poderia excluir a possibilidade de narrar inverdades, no intuito cristalino de fugir à incriminação ou à indicação de uma personalidade desajustada, fornecendo imagem pessoal negativa ao julgador. Aliás, o que não é vedado pelo ordenamento jurídico, é permitido. E se é permitido, torna-se direito.”
Concordando com o direito de mentir do réu, Nucci acredita que a ampla defesa não exclui a mentira, uma vez que o sujeito estaria buscando fugir da criminalização, ou seja, estaria lançando mão a todo tipo de método para se defender.
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